quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Texto escrito em 1998, mas continua super atual!


Halloween o ano inteiro

Carlos Heitor Cony
 
 
De tanto ir a Disney-world, em Orlando, e fazer compras em Miami, que é perto, brasileiros da classe média para cima importaram o Halloween – uma festa besta, dedicada a bruxas, fantasmas, monstros e outras aberrações. Os jornais mostraram o vice-presidente dos Estados Unidos numa animadíssima fantasia de múmia. O grosso da petizada prefere mesmo sair de bruxinha – as meninas ficam bonitinhas com as caras pintadas e o visual, que na Idade Média era atribuído àquelas tripulantes de vassouras mágicas. Tudo bem em seu tempo, lugar e modo. Não creio que o Brasil precise fazer Halloween numa data marcada. Temos um desfile de múmias e bruxinhas o ano todo, a qualquer hora. Quando venho para casa e paro no sinal que dá acesso à Lagoa, todos os dias sou abordado por bruxinhas de verdade, de carne e osso, mais osso do que carne.
 
Brincam tão bem que estendem a mão para o trocado. A rotatividade dessas crianças folgazãs é impressionante. Fazem ponto ali durante dez, 15 dias, depois desaparecem. Uma dessas bruxinhas me vendia dropes de hortelã, eu comprava e dispensava o troco. Ela dizia obrigada. Desapareceu. Perguntei por ela. Fora estuprada por um guarda folião que comemorava  seu Halloween  particular vestido de policial. Brinca-se sério no Halloween carioca. Quanto às múmias, também elas fazem Halloween o ano todo.
 
Dispensam as ataduras que enfaixam o corpo. Vestem-se até razoavelmente bem, com ternos bem-cortados e gravatas refulgentes. Estão em toda parte: no governo, no Congresso, na equipe econômica, nas classes produtoras. São políticos e técnicos mumificados pelo mercado. Assustam-se uns aos outros, mas após a brincadeira confraternizam, bebem complicadas poções e comentam entre risadas a boa atuação na grande festa neoliberal. Pedro Malan é o que leva mais a sério a fantasia. Mendonça de Barros é o mais entusiasmado.
 
FOLHA DE SÃO PAULO. Opinião. Outubro de 1998.